segunda-feira, 15 de agosto de 2011

JACQUELINE KELEN


Este texto realmente me tocou profundamente porque foi escrito de forma concisa e simples, evidenciando de forma objetiva como nós, humanos, fomos construindo, ao longo dos séculos de nosso processo ‘civilizatório’, uma filosofia e literatura onde os animais são seres perigosos que devem ser combatidos. A escritora mostra como a construção da superioridade humana passa pela desconstrução do respeito para com as outras espécies. Jacqueline questiona justamente esta ‘humanidade’ que, para existir e se afirmar destrói todas as outras espécies. Em um grito sufocado, clama à consciência do homem pós-moderno:

“Trata-se de proteger a Natureza e seus habitantes do império ameaçador e extremamente armado do homem e protegê-los de sua sede inveterada de dominar. Trata-se de defender os gorilas, os tigres, as baleias, os elefantes, os rinocerontes… Defendê-los do aquecimento planetário, da poluição dos solos e da água, dos desmatamentos das florestas, dos automóveis, das indústrias, das especulações imobiliárias, do turismo em massa, dos caçadores e contrabandistas, da urbanização, do incentivo ao lucro, dos laboratórios de experimentação científica.”

Vale a pena ler e reler!

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Nos textos bíblicos e na literatura da Antiguidade, o urso, o lobo, o leão e o javali evocam sem sombra de dúvidas a ferocidade, a crueldade e a força destruidora. Estes animais selvagens que vivem nos desertos, nas florestas, em lugares inóspitos e perigosos, geralmente são retratados como sendo hostis ao homem e tanto o campeão divino quanto o herói civilizador enfrentam animais temíveis, assim como enfrentam diversos monstros, para saírem vitoriosos das provações.

Sansão destrói um leão com as mãos, Hércules vence várias feras, reais ou imaginárias (leão, javali, a corça de Cerínia, a hidra, etc.) e Teseu recebe o mérito de se tornar rei por ter conseguido liberar o país de vários dragões e de criaturas monstruosas, dentre as quais o famoso minotauro.

Assim, a civilização e a religião se estabelecem contra a natureza, que é vista como violenta, desordenada, imprevisível; a civilização e a religião afirmam a superioridade da razão e da inteligência humanas , assim como a superioridade da linguagem articulada.

O herói que caça o javali ou que combate o urso significa, igualmente, no plano interno, o homem que doma, purifica e domina seus instintos primários – de egoísmo, de avidez, de ódio… - a fim de se tornar sábio ou verdadeiramente humano.

O tempo passou e houve uma inversão de valores e de papéis…

Antigamente era necessário proteger o ser humano de uma natureza obscura e invasora, parecia indispensável ao homem canalizar suas forças para combater animais ferozes; em nossos dias, trata-se de proteger a Natureza e seus habitantes do império ameaçador e extremamente armado do homem e protegê-los de sua sede inveterada de dominar.

Trata-se de defender os gorilas, os tigres, as baleias, os elefantes, os rinocerontes… Defendê-los do aquecimento planetário, da poluição dos solos e da água, dos desmatamentos das florestas, dos automóveis, das indústrias, das especulações imobiliárias, do turismo em massa, dos caçadores e contrabandistas, da urbanização, do incentivo ao lucro, dos laboratórios de experimentação científica.

Bem, todos estes flagelos são causados por pessoas que se dizem civilizadas por estarem equipadas com máquinas e apetrechos modernos. Pessoas cujo único ídolo é o dinheiro.

Seria inocente pensarmos que os casacos de pele que estão novamente nas revistas e nos desfiles de moda exprimam uma nostalgia da natureza em seu estado selvagem. A moda de casacos e roupas de pele é a exibição de uma violência que não conhece o sentimento de culpa, nem o peso na consciência.

A pequena raposa que pedia ao pequeno príncipe para ser cativada está bem longe de nossos dias…



A linguagem do coração foi enterrada. Atualmente a gentil raposa é despedaçada e serve de roupa para uma cretina.

A ferocidade mudou de terreno. Agora ela se tornou apanágio dos seres humanos.

Restam poucos animais selvagens no mundo, eles nos «falam» de uma liberdade perdida, de uma beleza natural e de uma alegria que nós massacramos ao longo dos séculos.

Todo relacionamento com outro ser humano ou com um animal envolve a resolução ou não de nossos antigos fantasmas e coloca em cheque mate nossas certezas. Ou nos relacionamos como dominantes (e, para os animais este é um combate desigual e desleal, pois já começam o jogo como perdedores, se levarmos em conta a diferença das forças que são confrontadas) ou nos relacionamos amorosamente, com respeito, atenção, benevolência, compreensão, espírito de partilha: com o coração límpido.

"Os homens não têm mais tempo para conhecerem as coisas. Eles compram tudo pronto nas lojas. Mas, como as lojas não vendem amigos, os homens não têm mais amigos".

Sim, a pequena raposa ainda fala no deserto dos homens.


Jacqueline KELEN, escritora.
Tradução e adaptação de Kris.





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